terça-feira, novembro 15, 2005

Agora que volto, Ton - Fragmentos (Da Série Canções do Exílio)

"O tempo passou. Começou a passar desde aquele dia em que olhei para as águas esverdeadas do regato, quando papai fechou o cadeado preto e mamãe ficou olhando a casa pelo vidro de trás do carro e eu acenei para todos (...) que estavam na esquina, e fiquei lembrando a cara que vocês fizeram, um pouco de tristeza e rancor, quando naquela manhã (oito e quinze no rádio do carro) partimos definitivamente do bairro e da cidade. Vocês ficariam sempre contra a parede cinzenta da venda do Ulisses (...) daí em diante não teriam outro lugar senão junto a esta parede que ía escurecendo com os anos (...) E os anos vão caindo com todo o seu peso sobre as lembranças, sobre a vida vivida, e o passado começa a se enterrar em algum lugar desconhecido, em uma região do coração e dos sonhos onde permanecerá, talvez intacto, mas coberto pela ferrugem dos dias (...) Tudo isto deve ser tão estranho para você, Ton (...) que me parece vê-lo sentado a cavalo no muro sujo da Avenida, os olhos vagos perdidos entre os galhos vermelhos das amendoeiras (...) Seus olhos sempre assumiram essa vagueza triste e ingénua quando alguma coisa lhe fazia ver que o mundo tinha outras dimensões, que você, dormindo entre sacos de carvão e laranjas podres, nunca conheceria (...) Eu não sei quais seriam seus sonhos, Ton, ou se você não os tinha; eu não sei se as pessoas como você tem sonhos ou se a dura consciência de suas realidades não lhes permite, mas de qualquer modo eu não o deixaria sonhar, tiraria seu sono contando tudo isso para voltar a ser um de vocês de alguma forma, mesmo que fosse apenas por esta tarde (...) O resto não será estranho, Ton. Amanhã é Dia de Finados e eu vim para ficar um pouco junto ao túmulo de meus pais; quis vir hoje porque há muito tempo a ilusão desta volta martelava em minha mente. Pensei em voltar a atravessar as ruas do bairro, entrar nos becos, respirar o perfume das cerejeiras, dos limoeiros, da relva dos solares, ir até aquela janela onde se podia ver o rio e seus barcos; me encontrar com você junto a parede cinza da venda do Ulisses (...) ir com vocês até o coreto do Parque Salvador e buscar no vento da tarde o som uniforme do repique dos escoteiros. Mas talvez deva admitir que já é um pouco tarde, que não poderei voltar sobre meus passos para buscar, quem sabe, uma parte mais pura da vida. Por isso deixei o bairro a um instante, Ton, e vim aqui, a esta mesa e comecei a pedir quase sem querer garrafas de cerveja que estou tomando sem perceber, porque quando vi você entrar com essa manqueira que não me engana e essa velada ingenuidade no olhar (...) me olhando como a um estranho, só tive tempo de entender que você, sim, permaneceu inalterável, Ton; que sua pureza é sempre igual, a mesma daqueles dias, porque só os meninos como você podem verdadeiramente permanecer incorruptíveis mesmo debaixo desse esquecimento, dessa pobreza, dessa amargura que sempre o fez olhar para os galhos vermelhos da amendoeira quando pensava certas coisas. Por isso fui eu quem mudou, Ton, acho que vou embora esta noite e por isso também não sei se lhe digo agora quem sou eu e lhe conto tudo isto, ou simplesmente deixo que termine de lustrar meus sapatos e parto para sempre."
(René del Risco Bermúdez, República Dominicana, 1968, in 16 Contos Latino-Americanos)

2 Comentários:

Blogger Lana Moon disse...

Djo amo esse conto, vous savez. E, evidentemente, já estou a chorar...

15/11/05 04:17  
Anonymous Anônimo disse...

Este conto é o mais lindo do século!!! Merece ser traduzido para todas as línguas e lido por todas as "gentes".......

24/11/05 14:02  

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