quinta-feira, outubro 05, 2006

Bom dia camaradas (Da série a Poesia Redescoberta)

Antes de guardar o livro na estante, queria dar um gostinho:
Para mim tinha sido bom, agora que tudo tinha passado, termos corrido juntos. Claro que era só um pensamento, mas de algum modo acho que essas coisas ficam assim guardadas no coração das pessoas, e eu e a Romina já éramos muito amigos, o termos fugido juntos do Caixão Vazio era mais uma coisa só nossa. Não falamos sobre isso, mas naquele dia, naquela tarde com o sol ali a fazer o momento ficar ainda mais bonito, acho que ficámos muito mais amigos.
(...)
as vezes numa pequena coisa pode-se encontrar todas as coisas grandes da vida, não pe preciso explicar muito, basta olhar.
(...)
Todo depende de los hombres, de sus corazones, de la firmeza con que luchen por sus ideales, de la simplicidad que pongan en sus acciones, del respeto que sientan por los compañeros...
PALAVRAS DO CAMARADA PROFESSOR ÁNGEL

POR ACASO NESSA manhã já não acordei bem-disposto, apesar de ser dia de ir ao aeroporto levar a tia Dada. Isso das despedidas, eu não gosto nada.
Matabichámos cedo porque era preciso ir "fazer o ché kingue", como dizia o meu tio. Eu avisei logo à tia Dada que era melhor ela alimentar-se bem porque às vezes demorava mais tempo estar à espera de ir para o avião do que viajar até Portugal.
- Deves estar enganado, filho, porque a viagem são oito horas... - ela sorriu.
- Não estou enganado, tia, depois num diz só que eu não t'avisei, yá?
Eu sabia o que estava a dizer. Fomos levar as malas àquela hora, e só o "ché kingue" demorou três horas, revista malas daqui, embirra com o peso dali, perguntas pra acolá, passaporte pra acoli, enfim, o mesmo de sempre. O voo então era ao meio-dia, mas lembro-me que às dez da noite foi quando ela seguiu para o avião, que só levantou voo às onze e meia. Dias mais tarde falei com ela ao telefone:
- Você não brinca com a Taag, ouviu? - e ela riu.

Nessa mesma tarde, a Romina cumpriu a promessa do afamado lanche, que estava uma delícia, tudo cheiinho de sobremesas deliciosas e com nomes complicados, passando pela fartura de gasosas, a mousse de chocolate, o bolo de banana, até tinha tanta kitaba mas só consegui atacar três pires. O Murtala não tinha vindo, não sei se era vergonha do vómito da última vez ou vergonha da queda que ainda nem tínhamos lhe estigado em condições. Mas estavam lá os camaradas professores Ángel e María, o Cláudio, a Petra, a Luaia, a Kalí, eu e o Bruno. Estava um bom ambiente, embora devo dizer que continuava no ar aquele cheiro da despedida...
Puseram um filme, e a mãe da Ró, que é muito atenta, trouxe dois pires com compota de morango, um para cada um dos camaradas professores. Era ver aquelas caras: olhavam para o doce a rir, comiam uma colherada, ficavam a chupar o doce na boca, demoravam, olhavam um para o outro, ele e a mulher, a sorrirem por causa de uma compota de morango, eu acho que aquela era uma cena muito bonita, mas não podia dizer a ninguém, senão ia sair estiga.
Era um filme de guerra, e foi a partir daí que o camarada professor Ángel começou a falar dos americanos, que eles balda - vam bué, que eles ganhavam sempre nos filmes mas que na realidade também comiam bué de porrada, mas de facto, nós começámos a dizer, nos filmes americanos o artista era sempre o melhor, nunca acabava o carregador da metralhadora dele, não era como a aká que só tinha 30 balas, uma vez eu e o Cláudio contámos, o muadiê teve dois minutos e meio a disparar sem parar e ainda sobrou uma bala no fim para ele disparar na granada que fazia explodir a ponte, ché, aquele muadiê era craque.
Quando o filme acabou, é que foram elas: eu bem que tinha sentido o cheiro da despedida, porque despedida tem cheiro, vocês sabem, né?, tanto que quando acabou o filme o camarada professor Ángel quase conseguiu recusar o pires de compota que a mãe da Ró lhe ofereceu, porque disse que queria dizer umas coisitas, mas depois lá resolveu comer a compota primeiro e falar depois. Na verdade, ele não quis dizer umas coisitas, quis dizer várias coisas:
Bueno, no resulta fácil decir esto que tengo que decir ahora, y principalmente no quería estropear este ambiente tan bueno que estamos viviendo aqui. Pero ustedes son, de cierto modo, no sólo nuestros alumnos, míos y de la camarada profesora María, sino también grandes amigos nuestros. Y es por eso que la camarada profesora María y yo decidimos que íbamos a darles esta noticia hoy, aquí más reservadamente, y no mañana cuando toda la escuela recibirá esta información.
(A Romina olhou para mim, ela sentiu o cheiro nesse momento.)
Ustedes son jóvenes, pero ya se deben haber dado cuenta de que muchas cosas han cambiado en su país en los últimos tiempos... Las tentativas de acuerdos de paz, la llamada presión internacional, todo eso no pasa sólamente en el telediario, va a pasar de verdad en su país, en sus vidas, en sus amistades... Su país está cambiando de rumbo y eso, como siempre, tiene consecuencias. La revolución, como decia Che Guevara, tiene muchas fases, unas más fáciles y otras más difíciles. Bueno... (tossiu) lo que les tengo que decir es que dentro de muy poco tiempo, yo, la camarada profesora María, el camarada profesor de Química y tantos otros cubanos que se encuentran aquí, van a regresar a Cuba.
(...)
Aí, aconteceu-me aquilo que às vezes me acontece, comecei a ver tudo tipo em câmara lenta, como se fosse um filme a preto e branco: os copos a baterem, os sorrisos nas bocas de todos, a Petra com os olhos encarnados e, finalmente, o brinde!

Na minha cabeça chegou uma mistura de frases: um brinde à partida de tantos cubanos, um brinde ao fim do contacto com os camaradas cubanos, um brinde ao fim dessa colaboração de amizade daquele povo com o nosso, um brinde também ao fim do ano lectivo, um brinde, já agora, à partida do Bruno, um brinde ao facto de não sabermos quem fica na turma para o ano que vem, um brinde porque não sabemos se alguém vai escrever para estes professores cubanos, um brinde porque eles quando chegarem lá em Cuba, por causa do tempo cumprido em Angola, se calhar vão ter melhores condições de vida, quem sabe mais carne por semana, quem sabe um carro, quem sabe algum dinheiro a mais, quem sabe... Já agora um brinde às palavras sinceras do camarada professor Ángel, um brinde às lágrimas da camarada professora María, um brinde ao orgulho que ela sentiu ao ver o marido falar, um brinde aos rapazes desta sala que estavam também com vontade de chorar, um brinde a Cuba, por favor, um brinde a Cuba, um brinde aos soldados cubanos tombados em solo angolano, um brinde à vontade, à entrega, à simplicidade dessas pessoas, um brinde ao camarada Che Guevara, homem importante e operário desimportante, um brinde aos camaradas médicos cubanos, um brinde a nós também, as crianças, as "flores da humanidade", como nos disse o camarada professor Ángel, um brinde ao futuro de Angola neste novo rumo, um brinde ao Homem do amanhã, e claro, como é que íamos esquecer isso, Cláudio?, um brinde ao Progresso!
A mãe da Ró perguntou à camarada professora María se queria dizer umas palavrinhas, e ainda bem que ela não aceitou, todo mundo tinha medo que as palavrinhas dela se transformassem nas palavronas do marido, que ela falava sempre muito mais rápido e mais quantidade de palavras que ele. Mas ela recusou, pediu só para lhe passarem um guardanapo, "no, dos pañuelos, por favor", que o ranho já começava a cair das narinas bem gordas que ela tinha.
(Ondjaki, Bom Dia Camaradas, Ed. Agir)

2 Comentários:

Blogger Muadiê Maria disse...

Oi Gláucia,
acabei de ler este livro. Gostei do final, uma bela homenagem aos professores cubanos. Por enquanto só conheço este livro dele.
Conheci Ondjaki numa palestra o mês
passado, ele é muito simpático e leve. E tem uma boca tão bonita!
Quanto ao muadiê, não deixa de ser uma homenagem a Angola, mas é principalmente para puxar pra mim a força e sonoridade desta palavra.
Um beijo,
Martha

6/10/06 21:00  
Blogger Gláucia disse...

Eu não o conheço pessoalmente, mas gostei muito do livro.
Na boca do moço eu tinha reparado por fotografia. É bonita, mesmo.
E eu também adoro essa palavra.
Um abraço, Martha. E aparece.

9/10/06 00:42  

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