sábado, fevereiro 16, 2008

Minha Guerra Particular (Masuda Sultan)


As vezes é irritantemente ingênuo. Vale pelo testemunho. Trecho:
"(...) Rabia explicou que a família fora atacada, à noite, na aldeia agrícola em que moravam. Haviam se mudado de Kandahar, onde os conheci, porque quando o bombardeio americano começou, em 8 de outubro de 2001, todos temeram por suas vidas. Diziam que os talibãs estavam escondidos em prédios próximos de onde morava a família, mansões onde até então residiam abertamente. À noite, o chão tremia e, numa delas, o som de uma bomba potente quase o ensurdeceu. Depois de ouvi-lo, para quase todos só restou o silêncio, seguido de um zumbido nos ouvidos. Fugiram da própria casa, com medo de que fosse bombardeada, mas o alvo havia sido outra, a poucos metros de distância. Foi nessa noite que o patriarca da família, o sogro de Nasria, decidiu que todos deviam partir. Acomodaram tudo o que puderam em três caminhonetes, uma que lhes pertencia e mais duas emprestadas da oficina mecânica em que trabalhavam. Alguns homens foram em suas motos.

No meio da noite, por volta das duas da madrugada, todos os quarenta membros da família se amontoaram nos veículos brancos, com as crianças chorando, e tomaram o rumo, em caravana, da aldeia onde estariam em segurança, um lugarejo mínimo chamado Chowkar-Karez, a duas horas e meia de distância, dezenas de quilômetros ao norte de Kandahar, próximo ao deserto e a cerca de uma hora da estrada principal. A aldeia não dispunha de iluminação, e, como nada nascia nos campos naquela época do ano, os homens passavam o dia trabalhando no cidade e voltavam para casa à noite com pão, óleo de cozinha e legumes. Rabia se voltou para Nasria, que assentiu, confirmando a exatidão da história. Rabia continuou.

Mais ou menos uma semana e meia depois, quando as crianças foram dormir, antes da meia-noite, ouviu-se um barulho forte, semelhante ao que costumavam ouvir quando moravam em Kandahar. O som de bombas é bastante familiar aos ouvidos afegãos. A nora de Nasria, Almasa, correu para a porta a fim de ver o que acontecera.

Uma garotinha, de uns oito ou dez anos, subitamente interrompeu Rabia.

- Então um foguete caiu em cima de Almasa e ela foi cortada em dois pedaços.

Segurei as lágrimas, enquanto a menininha subia no meu colo. Peguei-a e a sentei nos joelhos.

- Eu vi... Tinha sangue por todo o lado – continuou a menina.

Nasria interveio, começando a soluçar:

- Ela estava grávida.

- De quantos meses? – perguntei, tentando imaginar a aparência de Almasa, parada ali à porta, e esperando que a resposta me confirmasse que o feto ainda era muito pequeno, mas sem saber por que me dera ao trabalho de fazer a pergunta.

- Quase seis – lamentou Rabia, recomeçando a chorar. Apontou com a cabeça na direção da menininha no meu colo. – É filha dela. E esta também.

Apontou para outra menina que tentava tirar o lenço da cabeça de Rabia para cobrir a sua própria.

- Ela tem quase três anos.

Tami focalizou a câmera na menina no meu colo.

Nasria assumiu a narrativa para explicar o ocorrido.

- Na mesma hora, pegamos as crianças e saímos correndo da casa.

Do lado de fora, viram uma moto incendiada. Enormes bolas de fogo subiam no ar, caindo depois ao solo. As árvores da aldeia estavam em chamas. A família correu para evitar as bolas de fogo, em todas as direções possíveis, sem saber para que lado ir.

Ao mesmo tempo, perceberam estar sendo alvo de tiros. Algumas crianças andavam de mãos dadas, outras haviam se perdido.

- Achei que fossem o fim do mundo, o dia do kaymat – sussurou Nasria. E prosseguiu: - Estávamos correndo, e eles atirando do alto. Bem nas nossas cabeças! Um avião lá em cima atirava em nós.

- Quem atirava? – perguntei, ainda tentando entender a história.

- Os americanos – respondeu ela, num tom sem emoção.

Eu já suspeitava disso, mas perguntei porque tive dificuldade de acreditar no que ouvia e precisava deixar claro para as câmeras. Mesmo assim, por alguma razão, não entendi.

- Os americanos? – perguntei novamente, ainda me recusando a crer no que ouvira.

- É, os americanos – respondeu Nasria, supondo que eu repetia a pergunta para as câmeras. Na verdade, eu estava chocada. (...)”
(fls. 209-211)

1 Comentários:

Anonymous Anônimo disse...

Quatro anos já? Jesuis... passa rápido mesmo!

20/2/08 11:49  

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