quinta-feira, dezembro 01, 2005

Trouxe comigo teu olhar (Da Série Cartas Reenviadas)


“(...)E foi crescendo, em mim, a vontade de chutar portas alheias e construir paredes internas (inspirada por um relato da Katarina, sobre o grande Gabriel Britto Velho). Um pequeno episódio (um episódio bobo, mas que foi um pouco como a margarida no canteiro; ou como o cego na parada de ônibus para Clarice, no conto “Amor": eu caminhando na rua, em Nápoles, às 8h da manha, atenta aos motorini. Na minha frente uma menina, de uns 9 de idade, rabo-de-cavalo, mochila cor-de-rosa da Hello Kitty, caminhando, sozinha, com passos rápidos em direção à escola. Passamos por um mendigo, sentado sobre um pedaço de papelão na porta de uma igreja - e a menininha, decididamente, sem parar, sem alterar o passo, largou uma moeda na caixinha de esmolas do mendigo. O barulho do metal caindo na caixinha, o passo firme da menina - uma criança, dividindo com o mendigo sua mesada, o troco que o pai lhe dera para o lanche no recreio - esse pequeno gesto me comoveu profundamente, um absurdo. Mesmo que se tratasse apenas de um signo do paternalismo católico napolitano. Me comoveu, me perturbou. Continuei caminhando atrás dela, tentando captar todos os detalhes (a cor do cabelo e os fios que escapavam da borrachinha do rabo de cavalo, o desenho da Hello Kitty na mochila, segurando uma raquete de tênis), tentei ultrapassá-la e a senhora que estava logo adiante; não consegui de imediato, a calçada era estreita, na rua os motorini corriam ruidosa e perigosamente na contramão; minha angústia durou alguns minutos - queria ver o rosto daquela menina, precisava ver os olhos dela (pensei em Virginia Woolf, em Clarice, em Caio, no Duduzinho, em ti, na Katarina - como é bom não ser louca sozinha! :-), tive a sensação nítida, insana, de que aquele olhar me revelaria alguma verdade até então insuspeitada; finalmente consegui; ultrapassei-a, e me virei, loucamente, para encará-la, sem parar de caminhar - ela tinha olhos castanho-tranquilos, tímidos, bochechas fartas; ela estranhou o meu olhar indiscreto, que durou alguns segundos. Constrangeu-se. Durante alguns metros ainda caminhei ao lado dela; acompanhei-a, sem dizer nada, até a entrada da escola. Continuei meu trajeto, ainda surpresa pela quotidianidade, imprevista, daquela pequena verdade. Passei o resto do dia um tanto perplexa... E naquele momento, absurdamente, decidi que na volta a Frankfurt tinha que me mudar, que queria meus últimos meses de doutorado em total tranquilidade, que Duduzinho e eu merecíamos nossa solidão. (...) E justamente no dia do meu "retorno", apresentas-me as margaridas: adorei!! Que bela a carta da Tuca; e que belos os teus textos, sempre. A herança das palavras foi bem repartida :-) Bateu muita saudade, e por falar em olhares, queria ter te escrito antes, para dizer-te que voltei, do Brasil, com um olhar teu. Foi no dia do nosso último almoço no Ocidente, quando a Clara, depois de chamar algumas vezes a "Diiinda", te olhou, e te chamou, "mamãe". (...) Tu respondeste com esse olhar e esse sorriso, que eu carreguei comigo para Alemanha. Era um olhar tão teu, mas ao mesmo tempo desconhecido para mim. Não te escrevi antes, mas sempre penso naquele teu olhar, na mesa, no Ocidente. No avião, fiquei pensando na serenidade daquele olhar, que talvez só tenha sido possível depois da conjunção entre a Clara e o teu reencontro com as palavras.(...)”

Frau Lauretta

(De Laura Beck Varella para Gláucia Retamozo, em novembro de 2005)
Imagem: Bela Marusnik

4 Comentários:

Blogger Tuca disse...

Linda carta da Laura!

3/12/05 12:00  
Anonymous Anônimo disse...

Dear Friend,

I can't speek Your language, unfortunately. I would like to thank You that You had illustrated Your blog with my photo. I'm very delited that You mached my picture to such story.

Best regards Marusnik Bela from Hungary

7/12/05 18:59  
Blogger Miranda disse...

Dear Marusnik

We are very glad to see you here. If we had your e-mail perhaps we could translate you the post.
We found your photo at thousandimages.com and thought it was perfect for a story of someone who leaves his home country takes some images of other peoples eyes with her.

Thank you

Margarida, Harriet, Miranda, Gláucia e Tuca.

8/12/05 21:29  
Anonymous Anônimo disse...

Dear Harriett,

My email: marusnik@freemail.hu

It would be honorific me to know the story. I will be so glad if you can send me a translation in english. Sorry for my poor english...

Best regards Bela Marusnik

10/12/05 15:12  

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