segunda-feira, abril 24, 2006

Lixo e Purpurina II (da série Tributo a Caio)



30 de janeiro


Metade dos moradores de Bravington Road nos traiu. Já haviam conseguido outra casa ali perto, em Ladbroke Grove, sem nos dizer nada. Felizmente a amizade de Zé com Jack, o Esquarteador, rendeu esta casa em Victoria. São cinco andares, contando o sótão, onde fiquei, mas não há aquecimento e luz só no
basement. Mas se não tivéssemos conseguido esta, ficaríamos na rua. Que amigos. E acompanharam todo nosso sofrimento, com as malas na calçada, na chuva, com medo da polícia. Disseram que Angie vai sair amanhã da prisão. E que irá para a casa de Ladbroke Grove, viver com Deborah.

31 de janeiro


(Carta do Espaço Sideral para não ser enviada a Angie)

"Vem que eu quero te mostrar o papel cheio de rosas nas paredes do meu novo quarto, no último andar, de onde se pode ver pela pequena janela a torre de uma igreja. Quero te conduzir pela mão pelas escadas dos quatro andares com uma vela roxa iluminando o caminho para te mostrar as plumas roubadas no vaso de cerâmica, até abrir a janela para que entre o vento frio e sempre um pouco sujo desta cidade. Vem, para subirmos no telhado e, lá do alto, nosso olhar consiga ultrapassar a torre da igreja para encontrar os horizontes que nunca se vêem, nesta cidade onde estamos presos e livres, soltos e amarrados. Quero controlar nervoso o relógio, mil vezes por minuto, antes de ouvir o ranger dos teus sapatos amarelos, sobre a madeira dos degraus, e então levantar brusco para abrir a porta, construindo no rosto um ar natural e vagamente ocupado, como se tivesse sido interrompido em meio a qualquer coisa não muito importante, mas que você me sentisse um pouco distante e tivesse pressa em me chamar outra vez para perto, para baixo ou para cima, não sei, e então você ensaiasse um gesto feito um toque para chegar mais perto, apenas para chegar mais perto, um pouco mais perto de mim. Então quero que você venha para deitar comigo no meu quarto novo, para ver minha paisagem além da janela, que agora é outra, quero inaugurar meu novo estar-dentro-de-mim ao teu lado, aqui, sob este teto curvo e quebrado, entre estas paredes cobertas de guirlandas de rosas desbotadas. Vem para que eu possa acender incenso do Nepal, velas da Suécia na beirada da janela, fechar charos de haxixe marroquino, abrir armários, mostrar fotografias, contar dos meus muitos ou poucos passados, futuros possíveis ou presentes impossíveis, os meus muitos ou nenhuns eus. Vem para que eu possa recuperar sorrisos, pintar teu olho escuro com kol, salpicar tua cara com purpurina dourada, rezar, gritar, cantar, fazer qualquer coisa, desde que você venha, para que meu coração não permaneça esse poço frio sem lua refletida. Porque nada mais sou além de chamar você agora, porque tenho medo e estou sozinho, porque não tenho medo e não estou sozinho, porque não, porque sim, vem e me leva outra vez para aquele país distante onde as coisas eram tão reais e um pouco assustadoras dentro da sua ameaça constante, mas onde existe um verde imaginado, encantado, perdido. Vem, então, e me leva de volta para o lado de lá do oceano de onde viemos os dois."
(caio fernando abreu, 'ovelhas negras')

3 Comentários:

Anonymous Anônimo disse...

Eu acho que tenho um bloqueio com Caio Fernando Abreu. Só pode ser. Quando eu entro aqui e vejo algo dele, quase não leio, titubeio. E hoje me forcei a lê-lo. Só vou dizer que me rasgou por dentro.

26/4/06 10:38  
Blogger Alex disse...

Niña, você não viu nada...

**

Amei.amei.amei.

26/4/06 19:16  
Blogger Gláucia disse...

Niña,
Acho que nós vamos te seduzir... Risos.

Alex,
no final de semana tem mais.

27/4/06 19:01  

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