Irresponsabilidade Civil - Ensino à Distância (Da série Imorais e Surreais)
A partir de hoje o MI inicia curso de
Irresponsabilidade Civil
(Ensino à Distância)
É desnecessário fazer inscrição.
Não serão fornecidos certificados.
As dúvidas podem ser tiradas nos comentários.
Objetivo: tornar pessoas excessivamente responsáveis um pouco irresponsáveis. Irresponsáveis o suficiente para deixar de lado, momentaneamente, as obrigações, e passear sem rumo com um 'girassol na lapela', ou tomar sorvete no meio da tarde azul.
Público Alvo: pessoas de quadril endurecido e ombros tensos, que não conseguem ter jogo de cintura e aproveitar a vida com leveza, porque tudo pesa muito. São, em geral, inteligentes, extremamente competentes, mas alguma parte da infância lhes foi roubada. Tornaram-se adultos precocemente.
A primeira tarefa do curso é a atenta leitura do texto que segue. Uma, duas, três vezes. Depois, lembrar quando foi a última vez que.
Por não estarem distraídos
Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que por admiração se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles. Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria e peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e a toque _ a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras _ e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração. Como eles admiravam estarem juntos!
Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que estava ali, no entanto. No entanto, ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome, porque quiseram ser, eles que eram. Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos.
Clarice Lispector (Para não esquecer, Rio, Rocco, 1999).
Foto: Antônio Manuel Pinto da Silva
Irresponsabilidade Civil
É desnecessário fazer inscrição.
Não serão fornecidos certificados.
As dúvidas podem ser tiradas nos comentários.
Objetivo: tornar pessoas excessivamente responsáveis um pouco irresponsáveis. Irresponsáveis o suficiente para deixar de lado, momentaneamente, as obrigações, e passear sem rumo com um 'girassol na lapela', ou tomar sorvete no meio da tarde azul.
Público Alvo: pessoas de quadril endurecido e ombros tensos, que não conseguem ter jogo de cintura e aproveitar a vida com leveza, porque tudo pesa muito. São, em geral, inteligentes, extremamente competentes, mas alguma parte da infância lhes foi roubada. Tornaram-se adultos precocemente.
A primeira tarefa do curso é a atenta leitura do texto que segue. Uma, duas, três vezes. Depois, lembrar quando foi a última vez que.
Por não estarem distraídos
Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que por admiração se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles. Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria e peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e a toque _ a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras _ e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração. Como eles admiravam estarem juntos!
Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que estava ali, no entanto. No entanto, ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome, porque quiseram ser, eles que eram. Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos.
Clarice Lispector (Para não esquecer, Rio, Rocco, 1999).
Foto: Antônio Manuel Pinto da Silva
6 Comentários:
Obrigado, amiga por tu visita a mi blog, me llegaste al alma con este texto, sobre todo este párrafo que parece fué mi vida hasta hoy:
"Público Alvo: pessoas de quadril endurecido e ombros tensos, que não conseguem ter jogo de cintura e aproveitar a vida com leveza, porque tudo pesa muito. São, em geral, inteligentes, extremamente competentes, mas alguma parte da infância lhes foi roubada. Tornaram-se adultos precocemente".
Que bella eres, un beso y abrazo para você.
Héctor,
Teu blog é cristal e pedra, me compreendes? Já começa a me encantar pelo nome: "Cumbre Alta - Mi Pueblo".
Tem asas, tem estrelas, sem deixar de ter pés no chão árido, olhos na realidade a ser transformada pelas nossas mãos.
Bueno, que a descrição do 'público alvo' tenha te acertado em cheio é fantástico, mais uma das incríveis não-coincidências que nos fizeram coincidir. O texto é da Miranda. Mas "a concepção" do curso é coletiva.
A Clarice Lispector é maravilhosa, não é?
Ah, e fiquei muito vaidosa com o elogio.
Besos de Porto Alegre, Brasil.
Surreal Miranda, subscrevo minha inscrição, embora um pouco desconfiada... Trauma! Lembra do "cursinho" que da Glau quando éramos pequenas? Aquele que o prêmio eram papéis de carta... Me deixou sequelas psicológicas irreversíveis.
Saudades. Beijos.
Notável como tantos se revêem neste teu post. Parece que toda a vida foram assim, chatos e cansados, de tanta mania de assumir responsabilidade, sua e de outros, esquecendo-se de sorrir, de passear, de divertir a valer, com as coisas mais simples e originais na sua essência. Às vezes, acordam já tarde demais, talvez... Às vezes já não acordam mais... Às vezes já nunca mais parecem voltar a conseguir Viver... arrastando-se, tão só, quase sempre, um dia atrás do outro, vivendo um dia de cada vez, às vezes, mesmo, só para o minuto seguinte, sem mais projectos, sem mais futuro...
Que bom teres descoberto também o Hector e o seu pueblo. Há coisas e pessoas que nos enchem a vida de coisas tão boas e bonitas que todo o peso da vida se desvanece e ela já vale de novo tudo a pena.
Tuquinha,
Eu estou apenas na longínqua coordenação pedagógia deste projeto, de modo que não deves te assustar.
Bjins
Elis,
Vamos ensinar o povo a mover os quadris, correr, pular. Enfim, brincar de ser feliz!
Lindo, Glaucita, lindo.
Alguns meses depois....volto aqui
Agradável surpresa.
Posso incluir teu blog no meu?
(Ele tem só duas horas de existência.)
Bj.
Ed
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